A recente demolição do último armazém original do antigo porto de Ilhéus não representa apenas a perda de um edifício, mas a culminação de uma longa tradição local de apagar a própria história e negar o passado. Não se trata aqui de questionar a necessidade ou a oportunidade da ação da prefeitura, mas de refletir sobre algo mais profundo: o desaparecimento dos marcos históricos que narram a essência de uma cidade que nasceu porto e se construiu a partir dele.
Ilhéus, uma das cidades mais antigas da América do Sul, com quase quinhentos anos de história, vê sua memória coletiva ser reduzida a escombros, enquanto o vazio deixado levanta uma questão inquietante: como contaremos nossa história amanhã?
Em sociedades que valorizam sua identidade e respeitam seus antepassados, o patrimônio histórico é preservado não apenas como testemunho do passado, mas como um ativo vivo, capaz de gerar renda e dinamismo econômico. Portos históricos ao redor do mundo — de Baltimore a Barcelona, de Málaga a Rotterdam — foram transformados em vibrantes áreas de negócios, turismo, lazer e economia criativa, sem apagar suas raízes. Esses espaços preservam a memória coletiva e, ao mesmo tempo, tornam-se motores de desenvolvimento, atraindo visitantes, investimentos e orgulho local.
Em Ilhéus, porém, o porto histórico — epicentro da riqueza cacaueira que colocou a cidade no mapa global — foi progressivamente negligenciado, desvalorizado e, agora, praticamente apagado.
Imagine um guia turístico conduzindo um grupo por um estacionamento asfaltado, apontando para o vazio e dizendo:
“Aqui, onde hoje há carros estacionados, existiam três imponentes armazéns do início do século XX, que exportavam milhões de toneladas de cacau para o mundo. Aqui, a história de Ilhéus pulsava.”
Como transmitir o peso de uma narrativa tão rica sem os cenários que a materializam? A ausência de marcos físicos torna a história intangível, distante, quase uma lenda. Ilhéus parece estar em um processo de negação de si mesma, buscando uma identidade incerta enquanto destrói os alicerces de seu passado.
Não é difícil listar cidades portuárias que optaram por um caminho oposto, transformando seus antigos portos em símbolos de renovação e orgulho. Em Belém, no Brasil, o Estação das Docas revitalizou antigas estruturas portuárias, hoje um polo de gastronomia, cultura e turismo. No Rio de Janeiro, o Porto Maravilha resgatou a memória da região, integrando museus como o MAR e o Museu do Amanhã. Em Buenos Aires, Puerto Madero é um exemplo global de regeneração, com antigos armazéns convertidos em escritórios, restaurantes e espaços culturais. Na Europa, Barcelona transformou seu Porto Velho em um hub de cruzeiros e inovação, enquanto Málaga converteu o seu em um vibrante centro de lazer e comércio. San Francisco revitalizou o Embarcadero, e Marselha reconfigurou o Velho Porto em um espaço que equilibra história e modernidade.
Esses casos demonstram que preservar o patrimônio não é sinônimo de estagnação, mas de visão estratégica — onde a história é um ativo econômico e cultural.
Em Ilhéus, a destruição do porto histórico não é um evento isolado. Um exemplo emblemático é a antiga fábrica de chocolate do grupo Kaufmann, a primeira da América do Sul, com quase um século de existência. Seu prédio, com uma imponente chaminé, era símbolo da pujança da cidade na primeira metade do século passado. No entanto, em nome de um suposto “progresso”, a chaminé foi demolida sem qualquer consideração por seu valor histórico.
O que se seguiu foi devastador: as paredes da fábrica, com máquinas antigas, documentos, móveis de época e até um carro histórico, foram saqueadas. A população levou tudo — até os tijolos — enquanto a história da cidade se desfazia diante de nossos olhos. O discurso de que se tratava de uma “fábrica velha” ou de um porto “abandonado” reflete uma visão míope, que ignora o potencial de regeneração desses espaços.
A demolição do último armazém do porto de Ilhéus não é motivo de aplauso, mas de tristeza. É o apagamento de um capítulo fundamental da identidade da cidade, que poderia ter sido preservado e revitalizado, como fizeram tantas outras cidades portuárias.
A pergunta que fica é: onde foi parar o porto?
E mais: onde foi parar o respeito por nossa própria história?
Em vez de um estacionamento, poderíamos ter um espaço que contasse a saga do cacau, atraindo turistas, gerando empregos e inspirando as futuras gerações. Ilhéus precisa decidir se continuará a apagar seu passado ou se, finalmente, abraçará sua história como um ativo para construir um futuro digno de sua grandeza.
Quem ama Ilhéus sofre.
Gerson Marques
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